segunda-feira, 1 de junho de 2015

Causa ou consequência? O mau sono do bebé e a hiperactividade.


Como poderá o mau sono em bebé ter alguma relação com o potencial de Hiperactividade na infância?

Desde que iniciei o estudo aprofundado na área comportamental do sono do bebé e da criança que a hipótese da existência de uma relação entre os problemas de sono e a hiperatividade é-me evolutivamente clara, ao mesmo tempo que tem motivado a minha investigação na área, e orienta a minha prática.
Tenho noção de que a informação e o “boom” da evolução científica tem também como reverso, criado mais insegurança junto dos pais, que agora se tornam mais conscientes da importância das suas práticas, mas que injustamente nem sempre são devidamente acompanhados e ajudados para desenvolver as suas competências de acordo com a informação. Apenas bombardeados com aquilo que “devem” ou não “devem” e com as assustadoras consequências dos seus, na grande maioria das vezes, genuínos atos de amor, os pais devem ser apoiados na fortificação dos seus recursos e não na “prescrição” de “receitas” do que é melhor para os seus filhos. No entanto, acredito que é necessário informar os pais, e não considero que é na ignorância de conteúdos que reside a segurança, mas sim, nas escolhas e opções com conhecimento de causa.

Alguns estudos recentes têm demonstrado efetivamente, que rotinas desajustadas de sono, sono insuficiente e de má qualidade, assim como desregulação das sestas, estão relacionados com o transtorno de défice de atenção e hiperatividade, sendo por isso também a sua causa e não apenas a sua consequência, efeito ou sintoma (Shur-Fen Gau, 2006; Lee et al., 2014; Chiang et al., 2010; Konofal, Lecendreux & Cortese, 2010)
Estes resultados vêm confirmar muitas das minhas reflexões e conclusões que resultam de inúmeras observações naturalistas, na minha prática com os Pais em suas casas. Para além disso, vêm mais uma vez intensificar a importância do bom sono para o melhor desenvolvimento do bebé e da criança, e a necessidade desta área ser dignificada como um campo fundamental de estudo e intervenção precoce, não só para o aumento da qualidade de vida das famílias e dos bebés, mas também para a prevenção de problemas futuros, entre outros, o da Hiperatividade e Défice de atenção.
Eis as razões porque acredito que “não ensinar a dormir” como um bom hábito, desde a estruturação basilar do Ser- Enquanto bebé-, pode aumentar o risco, de em criança, se desenvolverem problemas associados à hiperactividade e défice de atenção:
Quando o bebé não dorme bem o que acontece nos momentos que passa acordado?
Na minha génese de metodologia assente no diagnóstico pela observação naturalista e co- implementação com os Pais tornou-se fácil concluir que quando o cérebro está cansado, ou seja, quando o bebé mostra sinais de sono, por cada momento que passa sem estar a dormir após estes sinais, vive cada vez menos tempo em qualidade. O bebé de forma repetida (ou crónica) chora e resmunga, apresentando pouca ou nenhuma concentração e proveito em qualquer atividade (ajustada à idade). A cada menos tempo de sono que faz, menor é a qualidade de aprendizagem, e maior a exigência de distração que o bebé necessita, para que simplesmente não chore.
Um bebé privado de sono requer por isso, demasiadas e constantes respostas por parte dos pais para se manter minimamente “bem-disposto” por mais do que alguns minutos. Além de exaustivo, pode perigosamente degradar a qualidade da relação parental e do vínculo, que é essencial. Os cuidadores tornam-se mais impacientes, menos disponíveis para a relação, mais cansados, e normalmente, mais frustrados...
Porque é que um cérebro sobrecarregado de estímulos ou excessivamente cansado impede que o bebé durma o que precisa?
Por outro lado, e confirmando o efeito “bola de neve” (ou “pescada de rabo na boca”) o bebé que está cansado, por não estar a dormir o que precisa, vive e experiencia muito mais estimulação e informação do que o seu cérebro poderá processar de forma tranquila no sono. O que se observa é que mesmo quando o bebé adormece poderá não atingir com facilidade a passagem continuada entre ciclos circadianos, ficando predisposto a acordar em sono leve. Fazendo um ciclo de sono normal (45minutos), o bebé estaria naturalmente em sono profundo aos 25-30 minutos após adormecer, e não acordaria nem ao som de aplausos. No entanto, por hiperestimulação em momentos acordados, estes períodos de sono leve, tornam-se assim mais longos. O bebé nesse caso fica altamente predisposto a acordar e a chorar a qualquer barulho, interrompendo facilmente o seu sono (excluindo outras variáveis que enraízam o despertar antecipado). Por sua vez, isto vai influenciar o bebé a dormir menos e pior. Nesse contexto, é típico que as sestas do bebé se possam padronizar na duração de 30 minutos ou ainda menos tempo.
Quando o bebé não dorme, o que tipicamente se faz para que este esteja bem-disposto?
Lembre-se que um bebé que não foi ensinado ou a quem não se ajudou a promover os melhores hábitos para dormir, poderá apenas por essa razão apresentar mais dificuldade em adormecer ou permanecer a dormir pelo tempo saudável e ajustado às suas necessidades. Apenas por essa razão, tenderá a estar mais tempo acordado. Mas o seu cérebro continuará cansado, a sua irritabilidade aumentará e fá-lo-á necessitar de ser distraído constantemente para que não chore. Serão então necessários estímulos evolutivamente mais fortes para o distrair do choro. Os pais preocupados procurarão todas as estratégias para que o bebé acalme, recorrendo muitas vezes a estímulos desajustados e acessórios como ipads, televisão, colo constante para que o bebé veja tudo em movimento, um “ banho “ de objetos estimulantes (luzinhas, brilhos, tremeliques, etc.). Obviamente que os pais estão exaustos porque o bebé não dorme, sem disponibilidade emocional muitas vezes para considerar que, estão eles mesmos presos num conjunto de respostas ao choro, de curto prazo, que adensarão o problema, tanto de sono, como de futuro comportamento do bebé, hábitos e proveito de atividade. Esta falta de disponibilidade (por parte de Pais cansados) irá estar mais próxima de condicionar os pais na sua paciência para ensinar o bebé a desenvolver os seus recursos e aptidões de médio longo prazo, de descanso por exemplo, que reactivamente aplicarão de forma mais constante soluções de curto prazo, mas que adensarão o problema de sono.
Quantas vezes já nos deparámos com situações padronizadas deste género, aparentemente inofensivas?
- O bebé a ser continuamente abanado no carrinho para que não chore, até mesmo quando já não está a chorar há algum tempo (O resultado prático para o bebé é distração pelo movimento do mundo envolvente, o mundo sempre em agitação).
- O bebé ser distraído com bonecos, livros ou brinquedos para que abra a boca e coma um pouco melhor.
- O bebé a ser abanado para dormir, sem chorar.
- O bebé que está na cadeirinha de tremelique, com a música ligada, a projecção de luz de estrelas, 5 bonecos de cores, texturas e brilhos diferentes caídos na sua frente, uma tv ligada de fundo, e um cuidador esmerado que agita uma roca na sua frente.
- A criança que é posta num local de atividade, muito tipicamente na sala, com “centenas” de brinquedos estimulantes indiscriminados, amontoados, jogos e livros, a televisão ligada nos desenhos animados que mudam a 10-15 minutos, e ainda, pelo meio, um surto de publicidade.
- O desabafo:” Só consigo ter uns momentos de paz quando a ponho em frente à televisão”.
Estes são apenas alguns exemplos de estratégias bem-intencionadas, aparentemente naturais e inofensivas, mas acima de tudo compreensíveis, por parte dos cuidadores, mas, que sendo apenas respostas de curto prazo para que o bebé se acalme ou não chore, além de não resolverem o que está na base da rabugice ou choro, não estimam a capacidade de aprendizagem do bebé. Estes recursos não o permitem concentrar-se na verdadeira aprendizagem, que no fundo desejamos que fortaleçam, e não criam as melhores condições de comportamento a longo prazo.
Desde quando é que a vida em ritmo natural que se conquista os aborrece? Se calhar nunca os aborreceu, mas enquanto “cérebros exaustos” não foi fácil retirar satisfação do ritmo natural e bem mais calmo que a vida tem, com tempo para aprender a fazer tudo da melhor maneira (comer, dormir, brincar). A prática e a orientação devem ser feitas desde cedo, no sentido de ultrapassar as dificuldades através da concentração e da aprendizagem, e não da distracção como recurso face à dificuldade. Para isso é preciso haver condições para a pro-acção, que melhor se alcançarão com a regulação dos ritmos e uma prática que igualmente estima e ensina os melhores hábitos de descanso (sim, ensinar a dormir bem como elemento a considerar igualmente). É comum os pais, por desconhecerem a importância da estruturação da aprendizagem e importância dos hábitos ao longo do primeiro ano de vida, possam desistir nas primeiras dificuldades e choros do bebé, assumindo que o bebé poderá não ter capacidade para aprender. Muitas vezes os pais não estão confiantes do que o bebé precisa, e isso é largamente mais observável quando os pais não tomam parte ativa na regulação dos ritmos do bebé, e se deixam antes ser orientados pelo ritmo errático do bebé, ainda inexperiente.
Inadvertidamente e desde a base da sua vida, os nossos bebés estão a ser distraídos para as mais básicas aprendizagens estruturais! Porque nos admiraria que mais crescidos, tenham dificuldade em concentrar-se? Ou até mesmo não saibam dormir, acalmar, comer, esperar, ouvir, entreterem-se sozinhos sentindo-se seguros? Porque se tornaram exaustivos e tantas vezes insatisfeitos? O que aprenderam afinal? Ou melhor, o que sem querer lhes ensinámos e se arrastou rapidamente até à infância?
Como isto se pode repercutir para depois dos 12-15 meses?
O bebé ao viver nesta privação de sono ao longo do seu primeiro ano de vida, terá razões suficientes para ter enraizado hábitos pouco salutares de atividade, de relação, de sono também, podendo obviamente influenciar a qualidade da sua alimentação diurna. Condicionados por um cérebro cansado em tempo acordado, e por respostas a curto prazo dos pais, altamente estimulantes desde cedo para que não chore, baseiam-se agora na sua “fórmula” conhecida de brincar, e se sentir bem. Dessa forma, desenvolvem um baixo índice de satisfação e tolerância à frustração com predisposição para saltitar de superfície em superfície, de brinquedo para brinquedo, de jogo em jogo, em muito pouco tempo, sendo frequente ouvir o desabafo “ele tem muita dificuldade em concentrar-se numa brincadeira ou atividade por mais de 1 minuto”, ou “ ou nada o satisfaz de facto por muito tempo”. É normal que os índices de concentração do bebé sejam inferiores em termos de capacidade, em relação a um adulto, mas é também verdade que só aumentam para os seus níveis possíveis a cada idade, caso se proporcionem as condições e orientação por parte de quem cuida e educa.
Resumindo, se antes o seu cérebro não tinha capacidade para se concentrar em algo, por estar cumulativamente cansado, hoje, mesmo tendo mais idade e logo mais capacidade (e menos necessidade de horas de sono em relação aos primeiros meses de vida), simplesmente poderá não ter hábito ou tendência de se satisfazer doutra forma.
O recurso à televisão, se não foi introduzido até então, é agora usado como um falso apaziguador, afinal os pais estão também cansados, o que é perfeitamente compreensível. A televisão não é um “bicho” e terá conteúdos até bastante interessantes para crianças, no entanto, o hábito da sua exposição padronizada deve ser evitado até aos 18-24 meses, segundo vários estudos concluem, e não será difícil compreender porquê. O uso excessivo de televisão muitas vezes está ligado à criação de nocivos hábitos de interação passiva que não ajudam o bebé ou criança a desenvolver competências estruturais. É importante que aprendam a socializar, a saber brincar mais e melhor, a reforçar a confiança em voltar a tentar e lidar com a pequena frustração, a concentrar-se numa tarefa, a saberem ouvir e confiar. Para além de interferir negativamente com estas aquisições, a exposição excessiva à televisão pode também introduzir dificuldades em aprender a acalmar, a mudar de ritmo para dormir, e na retenção de atenção em estímulos que exijam esforço mental por mais tempo gradual. Por não desenvolver os seus próprios mecanismos internos basilares, todas as tarefas que não envolvam elevado nível de estimulação passiva (sem esforço e sem “distração”), e que obriguem à organização ou concentração, poderão ser pouco aprofundadas e vivenciadas como desagradáveis e acentuadamente aversivas, normalmente manifestas com choro e “luta”. Por conseguinte, vão ser tendencialmente evitadas pela irrequietude constante de procurar um novo estímulo, nova actividade, nova distracção, manifesta em choro ou birra, ou outras vezes de forma insustentável e aparentemente irreversível na capacidade de resposta dos pais.
Ensinar a dormir é uma parte significativa de prevenção dos distúrbios emocionais e de comportamento- um bom investimento para a estrutura cognitiva e emocional da criança
Na minha modesta opinião, ensinar a dormir desde cedo é sim, parte da prevenção a problemas de sono, mas que condicionam também diagnósticos mais complexos.
Quem trabalha “o sono”, não trabalha só com, e para o sono, e deve ajudar os pais, e trabalhar junto dos bebés, em todas as outras áreas fundamentais para o desenvolvimento equilibrado (alimentação, atividade, vínculo emocional/relação de confiança, cognição, comportamento, etc.). O bebé não se desenvolve harmoniosamente apenas “à conta” de um campo de desenvolvimento. E não basta apenas ensinar a dormir. Não esqueço essa condição enquanto responsabilidade e coerência, das quais me faço acompanhar diariamente no meu exercício profissional e foco. É a noção constante de que o sono é uma das bases fundamentais para o desenvolvimento, mas que não dispensa a análise atenta de outros áreas do bebé/criança que influencia e pelas quais é influenciado, que me faz acreditar numa intervenção completa, responsável, sensível, aprofundada e atenta junto das famílias.
Dessa forma acredito e sustento-me em evidências, não só da experiência que registei ao longo dos anos, como de também de estudos científicos que advertem para a hiperestimulação nos bebés, reforçando que a mesma, além de agravar os seus problemas de sono, é também consequência inadvertida do mau sono. Tem repercussões no comportamento que devem ser prevenidas, abordadas e tratadas.
Muito se tem falado na facilidade com que se medicam as crianças, com estudos já a surgir também sobre os malefícios futuros destas terapêuticas. Como alternativa, reforço que é urgente trabalhar na prevenção, junto dos bebés e das suas famílias, demonstrando sim, que a qualidade de sono é uma peça basilar do desenvolvimento, bem-estar e qualidade de vida, que promove o vínculo afetivo, a concentração e o maior rendimento a todos os níveis e para todos.


E se prevenir maus hábitos de sono ajudasse a diminuir a prevalência de abandono escolar, défices de atenção e até problemas emocionais na adolescência? E se tratar problemas de sono evitasse um diagnóstico futuro de hiperatividade?
Começa a ser evidente a necessidade de se reformular as políticas de saúde e aumentar as respostas aos problemas dos nossos bebés, não só os afetos ao sono! É fundamental abraçar os benefícios da prevenção e da intervenção precoce perante os desafios do novo contexto da parentalidade. Mantenho a crença e trabalho com a certeza (também de forma privilegiada com os meus filhos) que as crianças que dormem melhor poderão ter melhores condições para um desenvolvimento equilibrado, estruturação do seu sentido de felicidade, e assim maior facilidade enquanto adultos, de viver todo o seu potencial.


Referências:

Shur-Fen Gau, S. (2006). Prevalence of sleep problems and their association with inattention/hyperactivity among children aged 6-15 in Taiwan. Journal of Sleep Research, 15(4), 403-14 .

Lee HK, Jeong JH, Kim NY ,Park MH,Kim TW ,Seo HJ, Lim HK, Hong SC, Han JH, (2014). Sleep and cognitive problems in patients with attention-deficit hyperactivity disorder. Journal of Neuropsychiatric Disease and Treatment 17(10), 1799-805.

Chiang HL, Gau SS, Ni HC, Chiu YN, Shan CY, Wu YY, Lin LY, Tai YM, Soong WT, (2010) Association between symptoms and subtypes of attention-deficit hyperactivity disorder and sleep problems/disorders. Journal of Sleep Research, 19(4):535-45.

Konofal, E., Lecendreux, M., Cortese, S.(2010). Sleep and ADHD. Sleep Medicine 11(7), 652-8.



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